Percebi aquilo só uma vez, durante a noite toda. Ele deu um bocado de ordem e todo mundo se mandou. Então, quando ficou só... Batman se curvou sobre a sela... feito um velhinho... Mais do que depressa, ele se ergueu e sorriu pra mim como se fosse engraçado.
O trecho acima vem de perto do fim de "Batman: o Cavaleiro das Trevas", um clássico dos quadrinhos dos anos 80. Um Batman de 60 e tantos anos volta a patrulhar Gotham City. Por baixo do capuz ainda é um senhor de idade, mas a motivação o mantém em pé. Ele leva tiro de bandido e da polícia, apanha feito cachorro ladrão, mas ainda assim segura as pontas com firmeza. Consegue até regenerar uma gangue e liderar uma cavalgada heróica para dar um choque de ordem no blecaute nuclear de Gotham City. Afinal, ele é o Batman.
Lembrei do Cavaleiro das Trevas ao ver agora há pouco o show do Purple em São Paulo. Amanhã devo escrever uma resenha decente. O rascunho que fiz no calor da hora
está no Twitter. Fui enviando música a música pra não perder o setlist, e aproveitei pra incluir outras observações.
Só escrevo isto às três da manhã porque preciso contar a vocês quem
realmente é o Ian Gillan. Ao longo da semana, vi gente reclamando da postura profissional dele. Vi gente achando um desrespeito ele cantar gripado desse jeito. Quem fala isso tem seus motivos, com base no que viu.
Porém, o Gillan que eu vi, do ponto de vista privilegiado de quem assiste o show lá da coxia, foi outro. Imensamente profissional. Fabulosamente respeitoso com seu público. Tossindo, mas à altura da lenda.
Acompanho o Deep Purple com freqüência suficiente pra não esperar do Gillan os agudos de 1970. Isso não é demérito, é um fato da natureza: o Pelé também não ganharia uma Copa hoje, com a idade que tem, e sei lá se ele ainda sequer cabeceia a bola de olhos abertos. Mas isso já é de alguns anos. O fato novo é que desde a chegada à América do Sul o Gillan estava gripado. Perdeu muito a voz noutros shows. Tossia muito.
Conversei com ele aqui. Ele estava bem rouco, mas garantiu que estava bem: "Acho legal que você se preocupe, mas é só uma gripe mesmo", ele disse. OK, mas um cantor gripado é mais ou menos o mesmo que um escrevinhador com tendinite.
Embora a coisa parecesse bem feia, ele estava bom o bastante pra cantar bem, embora sem arriscar muito. Um amigo ouviu uma nota desafinada em Into the Fire, mas fora isso nada além. Ele tossia de quando em vez entre um verso e outro. Mas as cenas que fizeram meu já imenso respeito por ele crescer ainda mais ocorreram deliberadamente longe da vista do público.
Atrás da bateria havia uma espécie de penteadeira preparada para o Gillan. Ali havia o setlist, toalhas, garrafas e lenços de papel. Foi ali que ele deixou seus crocs para entrar no palco como gosta: de pé no chão. E era ali que ele se refugiava na hora dos solos.
Ali, Ian apoiava os braços magros sobre a penteadeira, fechava os olhos e baixava a cabeça. Meditava. Respirava fundo, e sua camiseta ondulava.
Por um instante, estava ali um velhinho - um respeitável senhor de mais de 60 anos. Mas era só um instante. Quando o solo estava por terminar, Ian tomava um bom gole do que tivesse na frente (fosse água, cerveja ou pinga), respirava fundo e voltava para o palco.
Ao ultrapassar a bateria, ele batia o olho na platéia e abria seu sorriso mais sincero. Abria os braços, como que querendo abraçar os milhares de espectadores, e a galera delirava. Ele estava novo em folha, revigorado, como o Popeye depois de comer espinafre. Aí, puxava o microfone do bolso traseiro da calça e fazia o que sabe fazer melhor: cantava, batia palmas, regia a platéia, pulava, chacoalhava o pandeiro. Estava pronto para o combate. Afinal, ele é o Ian Gillan.
Lembrei das vezes em que deixei de trabalhar por estar muito gripado. Foram poucas, e não prejudicaram ninguém. Mas, quando vi o Ian Gillan daquele jeito, e além de tudo levantando daquele jeito, me senti um tremendo dum bunda-mole pelo mero motivo de faltar ao serviço por conta de gripe.
Termino com uma citação da primeira parte do Cavaleiro das Trevas:
Onde está a dor? Eu deveria ser uma massa de músculos exaustos e doloridos... fracos, desgastados, incapazes de se mover. Se eu fosse velho, com certeza estaria assim... mas hoje eu sou um homem de trinta anos... não, vinte. A chuva em meu peito é um batismo. Eu nasci outra vez.