quinta-feira, 28 de outubro de 2004

Peel e o Purple

Desculpem voltar ao assunto, mas sou fascinado pela história dos dois anos mais emblemáticos do Deep Purple (1969-1970). Sou fascinado pela BBC e fascinado pelo Deep Purple. Nesse ponto, os dois fascínios se unem e revelam aos poucos o processo criativo da melhor banda do mundo. Então, vou aproveitar o gancho da morte do John Peel pra chafurdar um pouco mais nessa lama.

Como eu já falei aqui antes, naquele tempo era mais negócio na Inglaterra pedir que a banda fosse ao estúdio da rádio gravar do que usar material já gravado fora, porque tinha direitos autorais. Mais ainda: com os Beatles evanescendo, a rádio queria descobrir quem seriam os sucessores dos Fab Four, e botava MUITA pilha nas melhores bandas britânicas. É daí que vêm maravilhas como o CD duplo do Hendrix na BBC, o CD duplo do Led na BBC, etc. Mas nunca lançaram um propriamente do Deep Purple na BBC. Lançaram faixas esparsas, mas só um tarado como eu pra juntar em um CD particular as da Mark 2.

Simon Robinson lembra que John Peel foi o primeiro cara a apresentar o Deep Purple no rádio, em junho de 1968, semanas antes de estrear o single de Hush. Naquela apresentação, o grupo foi considerado por unanimidade uma boa aposta comercial, o que garantiu todas as visitas da Mark 1 ao Top Gear:

18.06.68 - BBC Radio, Studio 1, Picadilly (Hush/One More Rainy Day/Help)
25.06.68 - BBC Radio, Studio 5, Maida Vale (Hush/One More Rainy Day/Kentucky Woman/It's All Over Now)
08.01.69 - BBC Radio, interview with Rod Evans
14.01.69 - BBC Radio, Studio 4, Maida Vale (Hey Boppa Re Bop/Emmaretta/Wring That Neck/Hey Joe/It's All Over Now)
11.02.69 - BBC Radio, Studio 4, Maida Vale (Emmaretta/Bird Has Flown/Hush/Hey Boppa Re Bop)
24.06.69 - BBC Radio, Studio 5, Maida Vale (Lalena/The Painter/I'm So Glad)
30.06.69 - BBC Radio, Studio 5, Maida Vale (The Painter/I'm So Glad/Hush)


Sucesso absoluto. Parte desses sons saíram no Brasil nos remasters de Shades of Deep Purple, Book of Taliesyn e Deep Purple.

A partir de junho de 1969, o Deep Purple toma novo fôlego, trocando de vocalista e baixista em um golpe de Estado. Entram Gillan e Glover, e aquela banda que fazia covers criativos dos Beatles nunca mais seria a mesma.

Na verdade, as últimas duas gravações da Mark 1 na BBC já ocorreram durante o golpe de Estado. Em 7.6.69, três quintos do Deep Purple original se reuniam com os dois novatos para gravar Hallellujah. No dia 16, lá estavam eles no Centro Comunitário de Hanwell, improvisando o que viriam a ser Kneel and Pray (mais tarde Speed King) e Child in Time.

Em agosto, eles voltam à BBC. É fascinante acompanhar o crescimento do repertório da banda. Especialmente de Speed King, que começou como Ricochet, foi chamada de Kneel and Pray e terminou com a miss molly dançando na casa da luz azul.

11.08.69 - BBC Radio, Studio 2, Aeolin Hall (Ricochet/Bird Has Flown)
29.08.69 - BBC Radio, Studio 1, Picadilly (Kneel And Pray/Child In Time)
11.09.69 - BBC Radio, Roundabout


Em 24 de setembro de 69, a coisa mais curiosa do mundo acontece: o Concerto para Grupo e Orquestra. O Deep Purple mostra sua cara e leva ao Royal Albert Hall o poder do gogó do novo vocalista, já mostrado um mês antes na BBC. Como não podia deixar de ser, o histórico show é transmitido pela glória do império.

28.09.69 - BBC Radio, Studio 5, Maida Vale (And The Address/The Painter/Child In Time/Kneel And Pray/Bird Has Flown)

Neste ponto, eles já tinham algum repertório próprio na segunda formação. Não precisavam mais de Painter, Bird Has Flown ou mesmo Hush. Speed King já era uma canção madura e podia ser colocada em vinil. Era aproveitar a base de Kneel and Pray e botar uma letra evocando o roquenrôu dos anos 50. As gravações de Speed King e Livin'Wreck duraram uma semana, de 14 a 21 de outubro de 69. Dez dias depois, eles voltavam à rádio pra apresentar o que tinham e fazer uma jam exclusiva.

31.10.69 - BBC Radio, Studio 4, Maida Vale (Speed King/Living Wreck/John Stew)

De 3 a 6 de novembro, eles se trancam no estúdio de novo para gravar sua mais preparada canção de então: Child in Time, que já estava praticamente pronta desde agosto, sendo apresentada inclusive em shows noutros países europeus. O Deep Purple passa a fazer turnês por clubes e faculdades do Reino Unido enquanto prepara seu quarto disco de estúdio. De 25 a 28 de novembro, eles se trancam para gravar Jam Stew, uma derivação da brincadeira na BBC, mas sem letra. Acaba só entrando na edição comemorativa do In Rock. Também gravam Into the Fire. Na virada do ano, em 1o de janeiro de 1970, cheios de champanhe nas idéias eles gravam Hard Lovin'Man. No dia 13, gravam Cry Free, que só aparece em disco em 1977 e só entra no In Rock em 1995.

No início de fevereiro, é hora de voltar à BBC. No programa de John Peel, "In Concert". Se vocês têm o disco In Concert 70-72, ouçam lá. "Hi, this is John Peel, with another In Concert program, from the BBC studios in London. Tonight's guests... Deep Purple".

19.02.70 - BBC Radio, Paris Theatre, London, UK, In Concert

O repertório é matador. Speed King, Wring That Neck, Mandrake Root e Child in Time. Três mega-solos. Platéia de olhos arregalados. Aquilo é jazz, em sua mais pura forma. Mas mais eletrificado, mais animal. Muito mais animal do que as experiências que o Miles Davis andava fazendo então.

Em 11 de março eles voltam ao estúdio, pra gravar Flight of the Rat, segundo o Jon Lord um libelo contra o uso de drogas. "Somos uma banda de bebuns", esclareciam eles quando perguntados se eles realmente eram os bons-moços que apregoavam ser. Em 13 de abril, gravam Bloodsucker. Tava na hora de voltar à rádio, certo?

21.04.70 - BBC Radio, Studio 5, Maida Vale (Hard Lovin' Man/Bloodsucker/Living Wreck)

OK, eles tinham um disco pronto. Mas não dispunham de um single. A gravadora queria que aqueles gênios estourassem comercialmente, precisava de um single. Vai daí que em 4 de maio eles voltam a se trancar no estúdio, depois de comer muita massa e encher a cara de vinho. Blackmore e Glover são os primeiros a chegar. Precisa sair um riff. Glover começa a brincar com um riff conhecido. Blackmore grita: "GENIAL!" e Glover acusa que não é criação e sim cópia.

Então Glover começa a brincar com o riff de It's a Beautiful Day e o altera para ter um resultado próprio. Tan, dan, da-dan... o resultado eu ouço todo dia quando alguém me liga. Mas faltava uma letra pra isso. Nisso, já estava a banda inteira, devidamente encharcada. Começam a fazer rimas sem sentido nem coerência. O importante era rimar: black night, it's not right, I don't feel so bright, I don't care to sit tight... e o resultado é um estouro de vendas. Cumprimentados, eles manifestam ceticismo. Porra, era só um porre, uma gravação sob pressão.

John Peel não curte a idéia de o Purple andar fazendo som comercial. Single? Sem estar no disco? Convenhamos. É nesse ponto que eles perdem todo o belo apoio que tiveram da BBC. Brigam pela imprensa musical, fazem o escambau. Resultado: só voltam à jóia da coroa em setembro, quando Jon Lord é entrevistado sobre por que diabos fizeram um single.

09.09.70 - BBC TV "Top of the Pops" (Black Night)
23.09.70 - BBC Radio, Studio T1, Shepherds Bush (Black Night/Grabsplatter/Into The Fire/Child In Time/Jon Lord interview)


A partir daqui, as aparições na BBC caem drasticamente. Quase nada de Fireball ou Machine Head pintou na BBC. Tenho uma versão de Strange Kind of Woman na BBC, mas não sei direito de quando é.

Mas, nesse ponto, eles não eram mais uma mera banda inglesa precisando de uma força da melhor rádio do mundo. Eles eram big and bold and more than twice as old than all the cats they'd ever seen. Na troca de guarda seguinte, em 1974, eles ainda apareceriam na BBC gravando o que se tornou o Live in London. Mas mesmo assim, nunca mais tiveram a mesma receptividade que tiveram em 1968 e 1969.

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