OK, essa vai ser longa. Eu, se fosse vocês, imprimia. Mas não deixem de comentar.
Pense em um grande artista que se apaixona perdidamente por uma mulher e passa a criar apenas junto com ela, brigando muito mais feio do que o normal com os colegas com os quais mudou sua arte e ainda por cima passando a se comportar diferente. O caso clássico é o de John Lennon e Yoko Ono. Mas pode descrever a recente relação de Hermeto Paschoal com Aline Morena. E pode descrever, certamente, o caso de Blackmore com a sua patroa, vulgo Blackmore's Night.
Blackmore e Gillan, guardadas as proporções, foram Lennon e McCartney no Deep Purple. A Candice não estava lá nas primeiras brigas, mas a Yoko também não. E ambas estavam junto na época do conflito final. Duas mulheres de idéias exóticas, especialmente sobre arte. Se Blackmore e Lennon já tinham alguma tendência temperamental, a parceria com as respectivas só adensou a redoma em torno deles.
Eu nunca tinha pensado nessa história nesses termos até ler a nota do Blackmore sobre Montreux. Eu sabia que ele recusaria, mas foi preciso ler a nota pra cair a ficha. Até ontem, eu interpretava Blackmore's Night como um ato de cavalheirismo do Blackmore - que, coitado, já era meio bolado e não andaria batendo muito bem das idéias. Mas eu achava bonito o fato de um grande artista como ele sair dos holofotes para dar passagem à patroa. Românticos. Estamos em falta no mundo.
Nas últimas duas semanas, alguns fatos surgiram, reforçando a hipótese Yoko Ono. Tem o caso do jornalista sueco, em que a empresária e sogra do Blackmore fez questão de ter um chilique mais explosivo do que aquele que o Blackmore teve no California Jam. Outro dia, fuçando o site de Blackmore's Night, li uma declaração da Candice sobre o episódio do copo d'água do vídeo Come Hell or High Water. Sim, ela estava lá como backing vocal. Sempre achei que fossem maledicências as declarações do Gillan sobre o fato de o Blackmore ter saído do camarim naquela noite puxado pela namorada por uma coleira.
Yoko Ono. Santa ou demônia? Libertadora ou escravizante? Até hoje, não sei direito o que pensar dela. Por conseqüência, não sei direito o que pensar do Blackmore com a patroa. Já disseram que esse tipo de interpretação sobre síndrome de Yoko Ono é bem machista. Faz algum sentido.
Com a pulga atrás da orelha, fiz questão de reler as declarações que o Lennon deu à Playboy na entrevista publicada pouco depois de ele morrer. Nunca li um Lennon tão maduro. Acho que o Blackmore concordaria, se não estivesse tão preocupado em falar com duendes e coisas do gênero.
Obviamente, curto mais os Beatles do que a Plastic Ono Band, mais o Deep Purple do que Blackmore's Night. Acho que faz sentido curtir o Blackmore no Purple apenas por aquilo que está gravado e em que eu sempre descubro coisas novas.
Acho chato que ele esteja incomunicável com os ex-colegas, acho que ele está esquisitão (Lennon também esteve), acho foda esse negócio da sogra. Mas é inegável que Blackmore aparenta estar muito mais feliz hoje do que em qualquer ponto de 13 anos para trás. O artista se escondeu sob um rabo de saia, mas o homem ficou feliz.
Deixemos o Blackmore em paz com seu passado, seu presente e seu futuro. Afinal, depois que chega ao topo, um homem não tem esse direito adquirido?
Para ler e pensar, reproduzo abaixo alguns trechos da famosa entrevista à Playboy.
PLAYBOY: Por que você virou um homem caseiro?
LENNON: Houve muitas razões. Eu cumpri obrigações e contratos desde que eu tinha 22 anos e até bem depois de fazer 30. Depois de tantos anos, era tudo o que eu conhecia. Eu não era livre. Eu estava preso numa caixa. Meu contrato era a manifestação física de estar na prisão. Era mais importante encarar a mim mesmo e encarar essa realidade do que continuar uma vida de roquenrol - e ficar oscilando conforme sua própria performance ou a opinião do público sobre você. O roquenrol não tinha mais graça. Decidi não aceitar as opções-padrão do meu negócio - ir pra Las Vegas cantar seus grandes sucessos, se tiver sorte, ou ir pro inferno, que é pra onde Elvis foi.
ONO: O John era como um artista que é muito bom em desenhar círculos. Ele se prende a isso e acaba virando sua etiqueta. Ele tem uma galeria pra promover isso. E, no ano seguinte, ele inventa de fazer triângulos, sei lá. Não reflete a vida dele. Quando você continua fazendo a mesma coisa por dez anos, ganha um prêmio por ter feito isso.
LENNON: Ganha o grande prêmio quando pega câncer e passou dez anos desenhando círculos e triângulos. Eu tinha me tornado um artesão, e podia ter continuado sendo um artesão. Eu respeito os artesãos, mas não estou interessado em virar um.
ONO: Só pra provar que consegue deixar as coisas de lado.
PLAYBOY: Vocês estão falando de discos, claro.
LENNON: É, ficar lançando só porque esperam isso de mim, como tanta gente que faz um disco a cada seis meses porque é o que se espera.
PLAYBOY: Está falando de Paul McCartney?
LENNON: Não só o Paul. Mas eu tinha perdido a liberdade inicial do artista ao me tornar escravo da imagem do que o artista deve fazer. Muitos artistas se matam por causa disso, seja pela bebida, como o Dylan Thomas, ou por doideira, como o Van Gogh, ou do coração, como o Gauguin.
PLAYBOY: A maior parte das pessoas teria continuado a produzir. Como você conseguiu ver uma saída?
LENNON: A maior parte das pessoas não vive com Yoko Ono.
PLAYBOY: Ou seja...?
LENNON: A maior parte das pessoas não tem uma companheira que diga a verdade e que se recuse a viver com um artista de merda, algo que eu sei ser muito bem. Eu sei encher de besteira a mim mesmo e a todo mundo em volta.
YOKO: É a minha resposta.
PLAYBOY: O que ela fez por você?
LENNON: Ela me mostrou a possibilidade da alternativa. "Não precisa fazer isso". "Não preciso? Mas... mas... mas..." Claro, não foi tão simples e nem rolou da noite pro dia. Precisou de reforço constante. Cair fora é muito mais difícil que seguir em frente. Eu já fiz as duas coisas. Por encomenda e no prazo, eu entreguei discos de 1962 a 1975. Cair fora parece aquilo que os caras fazem aos 65 anos, quando de repente não era pra eles existirem mais e são mandados pra fora do escritório [bate na mesa três vezes]: "Sua vida acabou. Vá jogar golfe."
(...)
PLAYBOY: Por que dizem tanto que a Yoko manda em você?
LENNON: Eles se apegam a uma coisa que nunca nem sequer existiu. Qualquer um que diga ter algum interesse em mim como um artista individual ou mesmo como parte dos Beatles simplesmente entendeu mal qualquer coisa que eu já disse se não entendem por que estou com a Yoko. E, se não conseguem ver isso, não conseguem ver nada. Estão todos batendo punheta pra... sei lá, podia ser qualquer um. Mick Jagger ou algum outro. Deixa eles baterem punheta pro Mick Jagger, tá bom? Eu não preciso.
PLAYBOY: Ele adoraria.
LENNON: Eu simplesmente não preciso disso. Deixa eles irem atrás dos Wings. Esqueçam de mim. Se é isso que querem, vão atrás do Paul ou do Mick. Não estou aí pra isso. Se isso não está claro pelo meu passado, estou dizendo em preto e verde, do lado dos peitos e bundas da página 196 da Playboy. Vão brincar com os outros meninos. Não me encham o saco. Vão brincar com os Rolling Wings.
PLAYBOY: Você já----
LENNON: Não, peraí um minuto. Vamos continuar por um segundo; às vezes eu não consigo me livrar disso. [Ele está de pé, escalando a geladeira.] Ninguém nunca disse nada sobre o Paul ter me enfeitiçado ou sobre eu ter enfeitiçado o Paul! Ninguém achou que era anormal naquele tempo, dois caras juntos, ou quatro caras juntos! Ninguém disse, "Pô, como é que esses caras não se separam? Tipo, o que será que rola nos camarins? Que papo é esse de Paul e John? Como é que eles ficam tanto tempo juntos?" Passamos mais tempo juntos lá no começo do que John e Yoko; nós quatro, dormindo no mesmo quarto, praticamente na mesma cama, no mesmo caminhão, vivendo juntos noite e dia, comendo, cagando e mijando juntos! Tá bom? Fazendo tudo juntos! E ninguém falava porra nenhuma sobre estarmos enfeitiçados. Talvez dissessem que estávamos enfeitiçados pelo Brian Epstein ou pelo George Martin [primeiro empresário e produtor dos Beatles, respectivamente]. Sempre tem alguém que deve ter feito alguma coisa pra você. Sabe, eles andam parabenizando os Stones por estarem juntos há 112 anos. Uêêêêêpa! Pelo menos o Charlie e o Bill ainda têm suas familias. Nos anos 80, eles vão estar perguntando: "Por que esses caras ainda andam juntos? Não podem se virar sozinhos? Por que eles precisam andar com uma gangue? É o liderzinho que tem medo que alguém possa esfaqueá-lo pelas costas" Essa vai ser a questão. Essa aí é que vai ser a questão! Eles vão olhar pros Beatles e pros Stones e todos esses caras serão relíquias. Os dias em que essas bandas eram feitas só de marmanjos estarão nas fitas de notícias, sabe. Vão mostrar fotos do cara de batom rebolando a bunda e os quatro carinhas com a maquiagem preta nos olhos tentando parecer sacanas. Isso é que vai ser piada no futuro, e não um casal cantando junto, ou vivendo e trabalhando junto. Tudo bem quando você tem 16, 17 ou 18 anos, ter companheiros e ídolos, OK? É tribal, é turma, tudo bem. Mas quando isso continua e você ainda está fazendo a mesma coisa aos 40 anos, quer dizer que ainda tem cabeça de 16.
(...)
PLAYBOY: Você fica dizendo que não quer voltar dez anos atrás, que muita coisa mudou. Você não sente que seria interessante - não precisa ser cósmico, só interessante - se reunir, com tantas experiências novas, e cruzar seus talentos?
LENNON: Não seria interessante levar o Elvis de volta à fase da Sun Records? Sei lá. Mas fico feliz em ouvir o que ele gravou naquela época. Não quero arrancá-lo do caixão. Os Beatles não existem e nunca existirão de novo. John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Richard Starkey podem até fazer um show -- mas nunca mais serão os Beatles cantando "Strawberry Fields" ou "I am the Walrus" de novo, porque não temos mais vinte e poucos anos. Não podemos ser assim de novo, nem as pessoas que estão ouvindo.
PLAYBOY: Mas não é você que está dando muita importância a tudo? E se fosse só uma diversão nostálgica, tipo reunião da turma do segundo grau?
LENNON: Nunca fui a essas reuniões. Meu negócio é: fora da vista, fora da cabeça. É essa a minha atitude em relação à vida. Então, não tenho nenhum romantismo quanto a nenhuma parte do meu passado. Penso nisso só até o ponto em que isso me deu prazer ou me ajudou a crescer psicologicamente. É essa a única coisa que me interessa no passado. Aliás, eu não acredito no ontem ("I don't believe in yesterday"). Sabe, eu não acredito no ontem. Só me interessa o que eu faço agora.
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