"Porra, Ian. Eu sei que não tem mais jeito de você tocar com o Blackmore. Pena, eu queria ter visto pessoalmente vocês dois tocando juntos, mas entendo que o cara é difícil. Você também não é fácil. Só que eu acho que você devia retribuir o favor a ele", eu disse. "Sabe como é, Natal."
Perto da véspera do Natal de 1978, Ian Gillan já estava fora do Deep Purple havia cinco anos, e a banda estava acabada havia dois. Era tarde da noite e o cantor estava em casa se abrigando da neve que caía lá fora quando ouviu batidos na porta.
"Lá, de pé, a uns dois ou três passos, estava o guitarrista com seu chapéu bobo de peregrino", escreveu Gillan em sua biografia.
-- O que você quer? - perguntou Gillan.
-- Estou procurando um cantor - respondeu Blackmore.
Após o convite para entrar, Blackmore perguntou se podia levar a então patroa Amy Rothman pra participar da visita. Claro que podia. A preocupação de Blackmore era evitar que a mulher estivesse por perto caso Gillan ficasse agressivo. Que nada: segundo uma entrevista de Blackmore, Gillan repetia: "Rich, estou tão feliz. Tô alegre pra caralho de você estar aqui."
Seguiu-se uma conversa agradável. Os dois secaram uma garrafa de vodca e tentaram contratar um ao outro para suas respectivas bandas. Estavam os dois fazendo mudanças no Rainbow e na Ian Gillan Band, enfim.
A Ian Gillan Band era uma banda diferente. Tocava uma espécie de jazz-rock, muito elaborada, e fazia o circuito das universidades inglesas. Estava feliz sendo pequeno. Tocava o que queria, para quem quisesse ouvir. Dificilmente dava muita gente, mas azar. Já Blackmore queria o contrário: ele queria diversão e bolo, queria tudo e mais um pouco, como cantava o Nei Lisboa. Queria juntar a direção pop do Rainbow com o peso do nome do ex-colega. Glover já estava a bordo.
Quando viram que não poderiam contratar um ao outro, Blackmore deu o presente de Natal de Ian Gillan. Foi um conselho:
"Ian, você está fazendo tudo errado. Devia estar tocando era nos grandes estádios."
Blackmore topou dar uma canja num show do Gillan, no Marquee. Lucille, Woman From Tokyo e - salvo engano - Smoke on the Water. Não há vídeo, mas há áudio:
A banda do Gillan estava mudando, assumindo um som mais pesado e inclusive cortando duas palavras do seu nome. Poucos meses depois, entrariam a bordo o guitarrista Bernie Tormé e o baterista Mick Underwood - aliás, ex-colega de Gillan no Episode Six e o sujeito que falou de Gillan para o Blackmore uma década antes.
Desde o primeiro disco dessa formação, "Mr. Universe", a banda foi com fome ao pomar e quebrou tudo. De todas as bandas de ex-membros que surgiram após o final do Deep Purple, foi certamente uma das mais interessantes. Seguindo o conselho de Blackmore, eles foram com sede aos grandes estádios.
Troquei mensagens de final de ano hoje com Tormé e Underwood, no Facebook. Os dois têm excelentes lembranças das turnês da banda, especialmente dos festivais de Reading.
A banda acabou sendo desmanchada por causa da volta iminente de Gillan para o Deep Purple, lá por 1982. Mais ou menos por essa época, chegou a haver reuniões pra tentar bater o martelo na volta do Purple. Demoraria ainda mais um pouco, mas resta uma foto da segunda canja de Blackmore com a banda do Gillan:
Gillan foi fazer uma cirurgia nas cordas vocais, e ao se recuperar foi passar uns meses no Black Sabbath pra depois pular para a volta do Deep Purple. Isso, somado a problemas com grana, fez com que os músicos da Gillan nutrissem uma raiva do ex-chefe pelas três décadas seguintes.
Meu desejo de Natal é que Gillan fosse retribuir o favor a Blackmore. Batesse na porta do castelo dele, sei lá, pegasse um copo e dissesse:
"Ritchie, você está fazendo tudo errado. Devia estar tocando era nos grandes estádios."
Não precisa nem se vestir de figurante do Senhor dos Anéis pra dar canja na banda do ex-colega. Não precisa nem convidar pra tocar junto - não deu certo da segunda vez, não deu certo ainda mais rápido da terceira vez, dificilmente daria certo uma quarta vez.
Mas será uma pena se dois dos músicos que eu mais admiro no mundo - dois músicos tão marcantes na vida um do outro que vivem se mencionando em entrevistas e biografias - deixarem os anos que lhes restam passarem sem voltarem a conversar uma vez que seja. Cresçam, seus velhos malas. *risos*
Aos amigos que leem o Purpendicular, um excelente final de ano. Em 2012, o Purpendicular faz 10 anos. Espero conseguir manter um ritmo de atualizações melhor do que o de 2011.