terça-feira, 17 de julho de 2012

Jon Lord, a vida, o universo e tudo mais




OK.

Tomei aqui minha taça de vinho em homenagem a Jon Lord. Era de vinho tinto que ele gostava, e o homenageei com um Malbec. Aguentei calado e sem chorar uma lágrima sequer enquanto assisti ao mais privilegiado DVD de Jon Lord que eu tenho: a gravação bruta da minha entrevista com ele, em 2009, que inclui trechos do ensaio de "Soldier of Fortune". Eu dava risada vendo ele rir comigo.

Tudo o que valia a pena dizer ao público em geral sobre a carreira do Jon Lord eu escrevi no obituário que fiz para o site da Folha: "Jon Lord foi um pioneiro na fusão entre o rock e o erudito". Sim, Jon Lord me ensinou que não existem gavetas na música - existe música boa e existe música ruim. Música ruim você sabe o que é, ela abunda. Mas música ruim não me interessa, só me interessa música boa e é dela que eu falo quando falo de música.

Aqui no Purpendicular, porém, estamos entre amigos. Mais do que isso: entre órfãos. Noves fora Tommy Bolin, que morreu na cabalística idade de 27 anos, Jon Lord foi apenas o primeiro dos membros do Deep Purple a nos abandonar por complicações decorrentes da vida. É triste pensar nisso, mas ele é apenas o primeiro. Nos próximos anos, a fila deve andar - tomara que demore, mas infelizmente vai. E saber que a gente também está na fila é assustador.

Como dizia Jorge Luis Borges, morrer é um costume que sabe ter toda gente. Quem tem quem? A gente tem o costume ou o costume que tem a gente? Tendo a achar que é ele.

A música de Jon Lord ("To Notice Such Things", especialmente "Afterwards", cujo poema está aqui e a música está abaixo) me ajudou a aceitar a morte do meu tio favorito, quase um pai pra mim, quando ele morreu de câncer no ano passado. Por isso e por tudo mais, minha primeira reação quando soube da morte do Jon foi de incredulidade.



A segunda reação foi de inconformismo. Escrevi no Facebook que nossos heróis, porra, nossos heróis não deviam ter esse direito. Deviam ser todos como aqueles meus heróis de papel, como os Supermen e os Batmen e os Capitães América, que morrem e poucos meses depois acham um roteirista mentiroso o suficiente pra encontrar uma desculpa pra trazê-los de volta.

Só que não tem jeito. Por mais geniais que sejam nossos mestres, e Jon Lord era uma das cabeças mais brilhantes com as quais tive o privilégio de aprender (seja em discos, seja em DVDs, seja assistindo ao vivo, seja nos curtos minutos da nossa entrevista de 2009), todos um dia nos abandonarão e deixarão este planeta mais burro, mais imbecil, mais boçal.

Eu estava vendo o Concerto for Group and Orchestra de 1999 e filosofando um pouco no ouvido da minha mulher quando conseguia completar uma frase sem me desfazer. Demorou um pouco.

Somos muito egoístas com esses que admiramos. Egoístas demais. Vemos Ian Gillan no palco e decretamos: "não canta mais nada". Vemos Blackmore tocando como coadjuvante da patroa e cobramos: "pombas, cadê a Fender?". Vemos Jon Lord morrer de câncer, uma doença dolorosa, cruel, e não nos conformamos. Não damos a eles o direito de seguir o curso da vida, de envelhecer, de ficar de saco cheio, de morrer.

Na nossa cabeça, nossos heróis deviam viver pra sempre.

Na nossa cabeça, nossos heróis deviam ter pra sempre vinte e poucos anos, como os heróis dos gibis.



Neste momento, na tela de LCD à minha frente, Jon Lord é um moleque mais jovem que eu e faz dueto com Blackmore na melhor fase do Deep Purple. Neste momento, aqui na minha sala, um fragmento da noite de 21 de agosto de 1970 vive na gravação de "Speed King" em "Doing Their Thing".

Mas ainda hoje à tarde eu estava no trabalho, incrédulo ao saber da morte de Lord aos 71 anos.

Ainda ontem, eu tinha 14 anos de idade e descia a Plínio Brasil Milano ouvindo Deep Purple no meu walkman paraguaio. Cantando junto a cada passo. Esses 21 anos voaram perante meus olhos e quando vejo o Jon Lord está morrendo de complicações trazidas pela idade. Num flash, de repente eu tenho 35 anos, 103 quilos e gastei uma fábula com discos e DVDs dos meus mestres.

Poucos minutos atrás, eu tinha 25 anos de idade e abri um blog especializado em Deep Purple. A banda estava numa fase de indefinição - parecia que Jon Lord ia se aposentar. Será que iria? Lembro como se fosse ontem dos meus amigos reclamando no meu velho blog do tanto que eu falava do Deep Purple. Lembro da minha ansiedade de saber cada movimento da banda. Faz poucos minutos, mas faz 10 anos.

Minutos antes, eu tinha 20 anos de idade e trabalhava à noite. Estava nervoso. Não comprava mais discos do Deep Purple desde a saída de Blackmore, mas eles foram tocar em Porto Alegre. Um colega do jornal foi cobrir o show e mandava avisar que músicas eles haviam tocado. Eu espiava sobre o ombro da editora de Variedades. Corrigi: não é "Black In Night", é "Black Night". Ela pergunta como eu sei, digo que tenho todos os vinis da banda. "Por que tu não tá lá?", ela pergunta. "Não tinha grana, e tinha que trabalhat", respondo. Ela me dá seu próprio ingresso de cortesia - número 0002 - e dinheiro para o táxi. Quando chego ao Opinião, quem faz solo? Jon Lord.

Lembro como se tivesse sido esta noite, mas foi há 15 anos.

Eu fecho meus olhos só por um momento e aquele momento se foi, já cantava o Kansas. Tudo o que somos é poeira no vento.

Quando eu assistia ao Concerto, hoje, eu pensava: não, Jon pode ter morrido, mas sua obra está aí. Na hora em que eu quiser, aperto um botão no controle remoto e estou de volta ao dia 23 de setembro de 1999, no Royal Albert Hall. Ou ao dia 7 de maio de 2009, dez anos depois, na galeria Olido, onde eu tenho três anos a menos de idade e Jon me diz pra cuidar e não bater com o microfone em seu nariz. Viajo no tempo e no espaço, como se tivesse um Delorean.



Sua obra está aí. Seu corpo podia ser frágil, como são todos os nossos corpos. Ele sofria com o câncer, como todos nós corremos o risco de sofrer caso vivamos o suficiente. Devia ser muito dolorido. Ele livrou-se desse sofrimento, e eu não me conformava até me dar conta do egoísmo dessa ideia.

Domingo, tive a sorte de conversar com meu amigo Paulinho Oliveira. Um dos homens mais sábios que conheço, sempre acabamos conversando sobre a vida, o universo e tudo mais. Sempre.

Ele me disse ter lido em Eduardo Galeano ou José Saramago que existem dois tipos de morto: o morto apenas e o morto bem morto. Morto bem morto é aquele que se foi e aos poucos se foram também todos aqueles que lembravam dele. Morto é aquele que, embora nos falte, deixa sua memória entre os que sobrevivem a ele, dos que lembram dele ou de sua obra. Jon Lord é desse tipo - eu vou morrer um dia e a obra de Jon Lord ainda estará por aí para ser lembrada.

Até ontem, a privilegiada cabeça de Jon Lord ainda podia nos trazer novos concertos, novas peças, novas ideias. Vai ser doloroso viver sabendo que não virá nada novo dele. E é cada vez mais presente a ideia de que meus outros heróis de carne e osso também não são como o Batman. Porque essa ideia me lembra que eu também não sou como o Batman, e é isso que me apavora.



Mas sua obra está aí. O 21 de agosto de 1970 está vivo na minha tela. Assim como o 24 de setembro de 1969 e o de 1999. Assim como o 7 de maio de 2009. E todas as outras datas em que os dedos mágicos de Jon Lord foram registrados e permanecem vivos. E é esse Delorean de imagens e música que nos mantém pra sempre cientes de que ninguém morre para sempre se deixar o que de melhor tiver na forma de uma obra.

E aí vem outro problema: qual é a SUA obra?

Eu ainda estou tentando descobrir qual é a minha. Leitores generosos podem dizer que este blog é uma obra. Mas blogs se apagam e somem no éter. Tudo o que eu escrevi em jornais já embrulhou peixe. Eu sei a minha obra, mas se eu um dia vier a faltar, ninguém mais sabe.

Qual é a sua obra? Qual é a minha obra? De que lembrarão sobre nós quando, tal como Jon Lord, repetirmos o triste costume de morrer?

Não sei. Mas não é tarde para saber. E a vida de gênios como Jon Lord nos lembra da importância disso.

Muito obrigado, Jon. Por tudo.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Morreu Jon Lord

Não tenho cabeça pra escrever um grande obituário agora aqui no blog.

Mas estou mal.

Fiquem com a entrevista que eu fiz com ele para a MTV, em 2009.