Baixei e estou ouvindo o show do Deep Purple no Opinião, em Porto Alegre, em 5 de março de 1997. Foi o primeiro show do Deep Purple a que fui. Em 1991, a falta de grana e os meus 14 anos não me deixaram entrar no Gigantinho. Em 92, cheguei a cumprimentar o Gillan mas não tinha grana pra entrar no Araújo.
Naquele dia terrivelmente quente de março de 97, eu estava trabalhando à noite no telex do Correio do Povo. Estava conformado com a possibilidade de não assistir ao show. Naquela época, eu estava tão empolgado com meu começo de profissão que o Deep Purple era um hobby quase relegado ao esquecimento na minha vida. De mais a mais, meu toca-discos andava estragado e eu não tinha onde ouvir CDs. Fazia dois anos que o Ritchie Blackmore tinha saído do Purple. Eu não tinha ouvido o Purpendicular e nem queria ouvir - Deep Purple sem Blackmore não era Deep Purple, eu pensava.
Mas aí eu chego na redação, depois de o show já ter começado, e vou fuçar no retorno do repórter Paulo Moreira sobre que músicas eles já tinham tocado. A editora de Variedades escreveu "Black In Night". Corrigi.
- Como tu sabes? - ela perguntou.
- Tenho quase todos os discos deles.
- E tá fazendo o quê aqui?
- Tenho que trabalhar, né? E tava sem grana pro ingresso.
Ela me expulsou da redação com um ingresso de cortesia (número 0002) e dez pilas pro táxi. Fiquei por cinco segundos no dilema moral de abandonar o telex. Vai que o Papa morre, ou algo assim. Mas já eram dez e pouco da noite, o jornal já estava bem encaminhado e eu podia escapar um pouco. Fui.
Cheguei ao Opinião naquele calorão portoalegrense e procurei um lugar onde eu conseguisse pelo menos enxergar a cabeça do mestre Ian Gillan. De camisa de manga curta e bermuda. Porra, bermuda? Tudo bem que estivesse calor, mas bermuda? O cara é simplesmente um deus da porra do rock pesado. Bermuda, cacete?
(Aliás, um parêntese: outro dia, ouvindo "Metal is the Law", do Massacration, comecei a raciocinar por que diabos eu estranhei e por que diabos minhas pernas são tão brancas até hoje. Dificilmente uso bermuda. Aos 14/15 anos, metaleiro ferrenho, eu ia para o clube de piscina de jeans e jaqueta. Usar bermuda era coisa pra skatista ou surfista, que era exatamente o tipo de gente que eu deplorava. Depois, por costume, continuei usando calça comprida no verão - até porque nunca tiro férias. Até hoje preciso de aviso da digníssima pra lembrar de pôr bermuda.)
Enfim: cheguei no meio de um solo de guitarra antes de Smoke on the Water. Que não estava no final do show. As luzes sobre o Jon Lord e o velho TOMATO emocionadíssimo. Depois de vê-lo em carne e osso de cabelo branco, confirmando as fotos que eu tinha visto na internet, estranhei em dobro. Aquele, definitivamente, não era o Deep Purple que eu conhecia. Não tinha Blackmore, Gillan usando bermuda, Jon Lord de cabelo branco, Roger Glover de faixa na cabeça e não de chapéu... caralho! Só o Ian Paice que eu não estava vendo direito, mas só faltava ele estar sem óculos.
Parei no meio de uns gringos de Caxias do Sul, que estavam tomando uísque e levantando-se uns aos outros pra enxergar o palco inteiro. Bebi com eles, levantei alguns, fui levantado por outros e todos curtimos muito. Foi numa dessas levantadas que eu vi o Steve Morse tocando. Aquela mão parecia uma aranha escalando o braço da guitarra. E o sujeito tocava MUITO. Não era o Blackmore, mas era muito bom. E é estranho: o som da guitarra parecia sorrir. Sorria tanto quanto aquele caipira americano de cabelo de palha com mãos de aranha.
Simpatizei. Talvez houvesse realmente um futuro para o Deep Purple. No meio dos gringos, participei do coro de "Smoke on the Water, Fire in the Sky". Levantei os dedos pro ar pra cantar When a Blind Man Cries, logo depois de um emocionante solo do Lord. O solo do Morse não lembrava nada o do Blackmore, mas incrivelmente eu não achava isso ruim. E ainda tinha Speed King (com um duelo de guitarra e teclado e outro de guitarra e voz que me deixaram babando) e Highway Star (com a guitarra rugindo feito um motor de carro) pela frente. A voz do Gillan estava claríssima, Glover martelava o baixo como nunca e Paice continuava um trator. Aquele era o Deep Purple, em que pese não ter o baixinho enfezado na guitarra.
Naquela noite, voltei para o jornal todo suado e de camisa aberta. Minha camisa era chinesa, sintética. Reagiu mal ao meu suor. Fedia mesmo. Ainda extasiado pelo show, tive que enfrentar minha culpa por ter largado o telex às moscas. Fui olhar o que tinha chegado de notícia. Nada importante. Nada necessário. O papa, como vocês sabem, não tinha morrido.
Ainda de camisa aberta, entrei na sala do diretor de redação, meu mestre até hoje.
- Mestre, posso te confessar uma coisa feia que eu fiz?
- Diga lá.
- Tô chegando agora do show do Deep Purple.
- Guri, quer levar uma suspensão?
- Não.
- Então eu não ouvi nada -, disse ele, sorrindo.
Quando eu saía da sala, ele diz:
- Ô! Fecha a porta aí e me conta como tava. Também gosto deles.
Mesmo com todas as contraprovas que o Morse tinha dado naquele show, de que ainda existia vida para o Deep Purple após o Blackmore, eu não comprei o Purpendicular. Não tinha onde ouvir CD. Aí comprei um computador. Em 98, saiu o Abandon, que tinha uma versão de Bloodsucker (do In Rock). Comprei o importado, só pra comparar. Fui direto à faixa 12. Quando eu ouvi aquela guitarra sorrindo, voltei a me tornar um grande fã do Deep Purple.
Só em 2003 eu leria a frase que melhor define o que eu saí pensando: "Gillan is god, and in Morse we trust". Pode sair o Blackmore, pode sair o Jon Lord. A gente lamenta. Mas o Deep Purple é maior que a soma de suas partes.
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