quarta-feira, 27 de agosto de 2003

Descascando Bananas

Já tá no ar, no Omelete, a resenha que eu fiz do Bananas. Reproduzo:


Yes! Nós temos Bananas

Após cinco anos longe do estúdio, o Deep Purple lançou, na segunda-feira, o disco Bananas, um dos mais esperados de sua carreira. A turnê de lançamento começa pelo Brasil - o país da Carmen Miranda, onde mais? -, em 10 de setembro, passando por sete Estados. Confira aqui as datas.
Bananas é um libelo contra o senso comum politicamente correto. Do título inusitado à capa a la Pearl Jam, tudo tem esse propósito. Ian Gillan gosta de fustigar o que chama de idiocracia: Eles já ordenaram que os shows de rock devem ser quietos, que as bananas devem ser retas, e quando a invasão dos transgênicos acontecer, elas também (as bananas) serão todas idênticas, escreveu em seu website. Contra o senso comum de que velhos roqueiros devem ser bananões vivendo do passado, o novo lançamento é um dos mais singulares da carreira dos veteranos bretões. Em Bananas, nenhuma das doze músicas escorrega na casca, e o disco desce tão redondo que dá pra deixar no repeat o dia inteiro.
O disco é o primeiro em 35 anos a ser gravado sem o tecladista Jon Lord, que fundou o Purple em 1968 e saiu para compor concertos. Mas o teclado Hammond continua ronronando nas músicas, sob o comando do experiente Don Airey. Ele já havia coberto uma licença-saúde do Lord em 2001, e no ano passado foi empossado. Bananas também é o primeiro disco que lista sete nomes diferentes de compositores. Ive got your number vinha se desenvolvendo ao vivo desde o ano passado, com o título Up the wall. Foi composta com Lord e gravada com Airey, e nas sessões de gravação teve pitacos do produtor.
Para compor e gravar, o grupo trancou-se em um estúdio de Los Angeles por duas vezes: uma em dezembro, durante três semanas, e outra entre janeiro e fevereiro. O produtor, Michael Bradford, acabou ajudando na composição de três faixas: além de melhorar Ive got your number, compôs House of pain e Walk on com o Gillan. Por seu envolvimento na criação do disco, Bradford acabou virando um sexto Purple. Isso, somado às influências naturais que cada membro do Purple traz de casa, levou à introdução de vários ingredientes novos, como uma colher de heavy salsa, uma pitada de rap e bom-humor a gosto. Mas os riffspoderosos continuam lá, na velha química que funde teclado, guitarra e baixo - marca registrada do Purple.
Pela primeira vez em sua história, o grupo ficou antenadíssimo para algumas características que tornariam as músicas mais palatáveis para não-fãs sem descaracterizar o som do Purple. Nisso, Bradford teve muita influência. Está aí a faixa Haunted, que será o primeiro single, para provar. Da forma como ficou, pode virar trilha sonora em Hollywood (ou até na novela das oito) sem nenhum demérito para a banda. Com o potencial do disco, a EMI alemã encampou o trabalho e passou a tratar o lançamento como prioritário, merecendo a mesma pompa que o Metallica recebe.
O Deep Purple é uma banda fascinante, disse Bradford em entrevista por e-mail ao Omelete. Eles são muito versáteis, e são fãs de música desde o jazz até o blues, a ópera e o hard rock. Foi provavelmente por isso que confiaram em mim. Sabem que não se deve julgar um livro pela capa.Nem um disco, por mais que a capa e o título de Bananas sejam incomuns e tenham causado piadas nos fóruns de fãs.
Na produção, Bradford joga com as diferentes camadas da música, dando um senso de espaço ao som. Ele acrescentou harmonias vocais, guitarras e teclados. Em Never a word, Gillan faz dueto consigo próprio, lembrando o MPB 4. O rap aparece num trecho da música Doing it tonight, uma espécie de heavy salsa. Essas duas são as músicas mais diferentes do disco, ao lado da instrumental Contact lost, composta em homenagem aos astronautas do ônibus espacial Columbia, que explodiu em fevereiro.
Uma das astronautas, Kalpana Chawla, era fã do Purple e amiga de Gillan e Morse. Na tarde após a explosão, Steve criou uma peça bastante calma e triste em homenagem aos mortos. Difícil não se arrepiar ao ouvir conhecendo a história. Quando a faixa estava produzida, o primeiro a escutá-la foi JP Harrison, viúvo de Kalpana, em um MP3 preparado especialmente por Steve. Fica bastante óbvio que vem do coração, comentou Harrison em entrevista por email.
Com toda a sutileza da produção, algumas sacadas sonoras ficaram impossíveis de reproduzir ao vivo. Bradford tem a resposta na ponta da língua: Não acho que seja ruim um disco ter mais coisas do que você pode tocar ao vivo. Ao vivo é o momento, o estúdio é uma tela que você pinta e com que você vive pra sempre. Quanto mais textura você trabalhar, mais terá pra descobrir ao longo do tempo.
O Deep Purple é uma das bandas que mais mudanças teve em sua formação desde seus primórdios. Ao todo, quatorze músicos já passaram pelo grupo, e os históricos das bandas formadas e integradas por eles forma uma das mais frondosas árvores genealógicas do rock. Da fase mais conhecida, que gravou In rock e Machine head, apenas três ainda estão na banda: o vocalista Ian Gillan, o baixista Roger Glover e o baterista Ian Paice. Mas não interessa se são coroas: no caso deles, panela velha é que faz música boa.
Para quem já conhecia e curtia o Purple, o novo disco não fica devendo nada a nenhum dos lançamentos anteriores. Para quem tem preconceito com bandas de senhores grisalhos, é a prova de que nem todos os coroas vivem apenas das glórias passadas. Para quem não conhece, é a melhor chance de se iniciar. Depois de Bananas, pode procurar também os relançamentos de Fireball (1971), Made in Japan (1972) e do Concerto para grupo e orquestra (1969), todos com edição nacional pela EMI.

Descascando Bananas

House of pain - Pra abrir o disco com um chute na porta. Peso e ritmo bem balanceados, com um riffpoderoso. A composição é de Gillan e Bradford. Letra típica do Gillan: mulheres deliciosamente problemáticas e algumas tiradas beirando ononsenseMorse e Airey brincam juntos com a mesma naturalidade com que Jon Lord e Ritchie Blackmore trocavam figurinhas nos anos 70. O solo do Don Airey não deve nada ao Lord, e o Gillan ainda toca harmônica e dá uns gritos. Eu duvido que você consiga ouvir essa música sem sair cantando back to the house of pain! pela casa.
Sun goes down - É a primeira música em que se sente claramente a mão do novo produtor. O riff é poderoso, meio sombrio mas com um ritmo gostoso. Os backing vocals no refrão são meio fantasmagóricos, e lá pelas tantas parece entrar uma transmissão de rádio. É interessante como, em alguns trechos, a ação mais criativa parece estar no fundo. É intencional, pra ouvir com atenção. E saca só o que é o teclado do Airey no final.
Haunted - É a faixa de trabalho do disco, que vai render o primeirosingle. Uma balada ensolarada, se é que existe essa categoria. Conjuga bem as características comerciais com a competência técnica, mais do que qualquer outra balada anterior do Purple - todas falhavam no apelo comercial. Haunted caberia bem em qualquer filme hollywoodiano. As gurias fazendo backing vocal no refrão, com aquele sotaque sacana da Califórnia, fazem miséria com a imaginação de qualquer marmanjo.
Razzle dazzle - Alto astral, com ritmo; de tocar sem medo em qualquer bar de rock. Tenho a coleção completa do Purple em casa, e não consigo lembrar de nenhuma música deles que tenha me dado essa vontade de dançar com uma cerveja na mão e segurando a namorada pela cintura. Será que o clima da Califórnia influiu? Bradford também fez um ótimo trabalho na mixagem da parte em que a voz predomina. O piano do Airey parece coisa de bar de caubói.
Silver tongue - Olha o peso aí. Roger Glover metralha o baixo, dominando a música. Não sei por que o Gillan tem essa mania de enfatizar I may be crazy, but Im not stupid (ele diz o mesmo emWatching the sky, do Abandon), mas eu gosto da frase. O teclado lembra o clima de House of blue light (1987). A levada da letra lembra a de Evil eye, do disco Accidentally on purpose, que Gillan gravou com Glover ao sair do Purple, em 1988. Silver tongue, porém, é mais elaborada..
Walk On - Um rock introspectivo, mas não exatamente uma balada. Não como Haunted. Sintetizadores no começo, o velho Hammond bem colocado, baixo e guitarra dando um ritmo legal. Não curti os sintetizadores do final. Lembraram um pouco a tentativa de dar um clima cósmico à introdução instrumental de River deep, mountain high (do disco Book of taliesyn, 1968)
Picture of innocence - A introdução lembra Lazy. Blues nas primeiras estrofes, rock com pitadas de rap no refrão, uma letra sensacional. Lendo parece estranho, mas vai lá escutar. Vocal tranqüilo, letra divertida, num libelo contra a mentalidade politicamente correta: No drinks / no smokes / no dicking around, no little funny jokes / Whats next / no sex?. Don Airey usa bem a técnica do Jon Lord de dar tapinhas nas teclas do Hammond. Ian Paice não tem pena dos pratos.
Ive got your number - É a banana que mais amadureceu até ser gravada. Foi composta ainda com o Jon Lord e vinha sendo experimentada desde a turnê na Inglaterra no começo de 2002. Inicialmente se chamava Up the wall e tinha uma letra diferente. Durante a composição, em dezembro, Bradford botou fermento no bolo. Acabou sendo outra música que tocaria em qualquer bar de rock. Nos riffs, Morse e Glover dão o clima. A letra é divertida. Tem aqueles interlúdios apocalípticos em que o teclado faz a cama e depois vem a bateria esperneando em cima. É a música que mais marca o disco como a continuação lógica do anterior, Abandon (1998).
Never a word - Completamente diferente de qualquer coisa que o Deep Purple fez antes. Não dá pra encaixar numa categoria clara de música, o que é uma característica fenomenal do Purple. Pandeiro chacoalhando. A longa introdução lembra as músicas que se ensaia em violão clássico. O teclado sutil, o baixo discreto. Demora dois minutos e meio até entrar o vocal, o que inicialmente me levou a achar que o título fosse descritivo. Mas o vocal vem, e surpreende. A voz do Gillan é tranqüila, parece que ele está cantando uma canção de ninar. Faz dueto consigo próprio, o que lembra o MPB 4, com um instrumental imensamente mais complexo. Sem arriscar mais os agudos dantanho (ele já é um senhor de 58 anos, ora), desenvolveu muitas técnicas interessantes para os tons médios de sua voz.
Bananas - Uma música poderosa, que também não faz fiasco em bar de rock. Vamos zarpar pro futuro, de volta aos anos 60. O ritmo nervoso lembra o Episode Six, a banda que Ian Gillan e Roger Glover tinham antes de entrar para o Purple, especialmente pelo baixo de surf rock. A harmônica que o Gillan toca depois de cada frase dá um charme especial. Aos três minutos, Don Airey e Steve Morse enlouquecem e matam a pau juntos, pra depois cada um mostrar o que sabe. Isso ao vivo deve ser difícil pra caramba de tocar - especialmente para o Gillan coordenar voz e gaita - mas deve ser um tesão de assistir. A letra parece uma cotovelada na playboyzada sem objetivo: Ive got nothing to say today / I used my words up yesterday / Im just lying here in the sun / Watching you guys having fun.
Doing it tonight- Outra completamente diferente de tudo o que o Purple fez antes. Lembra um pouco os ritmos latinos, tipo salsa (!), mas com baixo e bateria agressivos. Lá pelas tantas, pára tudo e o Gillan e o Morse encaram algo como rap, pra depois voltar à heavy salsa. O rap deve ser influência da Grace, filha do Ian Gillan, que adora isso. Nos fóruns sobre o Purple, tem gente dizendo que essa é a melhor música do disco. Eu sou meio tradicionalista nesse ponto, mas é realmente interessante.
Contact lost - Uma instrumental curta, mas tocante, com guitarra, violão, teclado e, de leve, percussão e baixo. A música tem duas fases, uma quase épica e uma melancólica, mas ainda assim soando grandiosa. O contato perdido foi o da Nasa com o ônibus espacial Columbia, em 3 de fevereiro, quando a banda estava gravando. Uma das astronautas que morreram, Kalpana Chawla, era fã do Purple. Do espaço, mandava e-mails para eles - Steve Morse recebeu um, pouco antes da explosão da nave. Quando a nave explodiu, Ian manifestou suas condolências. O cantor e o Morse estiveram entre os primeiros a prestar solidariedade ao marido da astronauta, o músico JP Harrison. Na tarde após a explosão, Morse pôs-se a compor a música.Como as forças de combate, pilotos de teste e bombeiros, todos sabiam que estavam se expondo aos maiores níveis de risco, mas ninguém jamais havia testemunhado um acidente tão horrendo na aterrissagem, escreveu Morse - ele mesmo piloto de aviões - em fevereiro. Harrison, o primeiro fora da banda a ouvir a música, ficou emocionado pela homenagem à equipe de sua mulher.


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