domingo, 8 de março de 2009

Ian Gillan, o Cavaleiro do Púrpura


    Percebi aquilo só uma vez, durante a noite toda. Ele deu um bocado de ordem e todo mundo se mandou. Então, quando ficou só... Batman se curvou sobre a sela... feito um velhinho... Mais do que depressa, ele se ergueu e sorriu pra mim como se fosse engraçado.

O trecho acima vem de perto do fim de "Batman: o Cavaleiro das Trevas", um clássico dos quadrinhos dos anos 80. Um Batman de 60 e tantos anos volta a patrulhar Gotham City. Por baixo do capuz ainda é um senhor de idade, mas a motivação o mantém em pé. Ele leva tiro de bandido e da polícia, apanha feito cachorro ladrão, mas ainda assim segura as pontas com firmeza. Consegue até regenerar uma gangue e liderar uma cavalgada heróica para dar um choque de ordem no blecaute nuclear de Gotham City. Afinal, ele é o Batman.

Lembrei do Cavaleiro das Trevas ao ver agora há pouco o show do Purple em São Paulo. Amanhã devo escrever uma resenha decente. O rascunho que fiz no calor da hora está no Twitter. Fui enviando música a música pra não perder o setlist, e aproveitei pra incluir outras observações.

Só escrevo isto às três da manhã porque preciso contar a vocês quem realmente é o Ian Gillan. Ao longo da semana, vi gente reclamando da postura profissional dele. Vi gente achando um desrespeito ele cantar gripado desse jeito. Quem fala isso tem seus motivos, com base no que viu.

Porém, o Gillan que eu vi, do ponto de vista privilegiado de quem assiste o show lá da coxia, foi outro. Imensamente profissional. Fabulosamente respeitoso com seu público. Tossindo, mas à altura da lenda.

Acompanho o Deep Purple com freqüência suficiente pra não esperar do Gillan os agudos de 1970. Isso não é demérito, é um fato da natureza: o Pelé também não ganharia uma Copa hoje, com a idade que tem, e sei lá se ele ainda sequer cabeceia a bola de olhos abertos. Mas isso já é de alguns anos. O fato novo é que desde a chegada à América do Sul o Gillan estava gripado. Perdeu muito a voz noutros shows. Tossia muito.

Conversei com ele aqui. Ele estava bem rouco, mas garantiu que estava bem: "Acho legal que você se preocupe, mas é só uma gripe mesmo", ele disse. OK, mas um cantor gripado é mais ou menos o mesmo que um escrevinhador com tendinite.

Embora a coisa parecesse bem feia, ele estava bom o bastante pra cantar bem, embora sem arriscar muito. Um amigo ouviu uma nota desafinada em Into the Fire, mas fora isso nada além. Ele tossia de quando em vez entre um verso e outro. Mas as cenas que fizeram meu já imenso respeito por ele crescer ainda mais ocorreram deliberadamente longe da vista do público.

Atrás da bateria havia uma espécie de penteadeira preparada para o Gillan. Ali havia o setlist, toalhas, garrafas e lenços de papel. Foi ali que ele deixou seus crocs para entrar no palco como gosta: de pé no chão. E era ali que ele se refugiava na hora dos solos.

Ali, Ian apoiava os braços magros sobre a penteadeira, fechava os olhos e baixava a cabeça. Meditava. Respirava fundo, e sua camiseta ondulava.

Por um instante, estava ali um velhinho - um respeitável senhor de mais de 60 anos. Mas era só um instante. Quando o solo estava por terminar, Ian tomava um bom gole do que tivesse na frente (fosse água, cerveja ou pinga), respirava fundo e voltava para o palco.

Ao ultrapassar a bateria, ele batia o olho na platéia e abria seu sorriso mais sincero. Abria os braços, como que querendo abraçar os milhares de espectadores, e a galera delirava. Ele estava novo em folha, revigorado, como o Popeye depois de comer espinafre. Aí, puxava o microfone do bolso traseiro da calça e fazia o que sabe fazer melhor: cantava, batia palmas, regia a platéia, pulava, chacoalhava o pandeiro. Estava pronto para o combate. Afinal, ele é o Ian Gillan.

Lembrei das vezes em que deixei de trabalhar por estar muito gripado. Foram poucas, e não prejudicaram ninguém. Mas, quando vi o Ian Gillan daquele jeito, e além de tudo levantando daquele jeito, me senti um tremendo dum bunda-mole pelo mero motivo de faltar ao serviço por conta de gripe.

Termino com uma citação da primeira parte do Cavaleiro das Trevas:

    Onde está a dor? Eu deveria ser uma massa de músculos exaustos e doloridos... fracos, desgastados, incapazes de se mover. Se eu fosse velho, com certeza estaria assim... mas hoje eu sou um homem de trinta anos... não, vinte. A chuva em meu peito é um batismo. Eu nasci outra vez.

9 comentários:

  1. Clap, clap, clap (onomatopéia de aplausos)!

    Aplausos ao Gillan. Aplausos a você!
    Belo texto!

    Se minha inveja já se manifestava quando eu varava a noite/madrugada com minha maldita dissertação de mestrado e acompanhando o show em tempo real no seu Twitter, ela triplicou ao ler a resenha.

    Inveja 1: Você no show, eu em casa trabalhando (Por que eles não vieram ao Rio? Por quê?).

    Inveja 2: Assistir o show da coxia é algo que eu nem posso imaginar. Muito menos ter o contato que você teve com os caras.

    Inveja 3: Gostaria de ter lido esse gibi do Batman e fazer essa bela analogia.

    Abraços,

    Vitor
    MOFODEU
    www.mofodeu.com

    PS: Nenhuma dessas invejas têm efeitos negativos.

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  2. Parabéns Marcelo!!!

    Ótimo texto!! A altura do nosso querido "Silver Voice", hoje já não tão Silver assim...
    Quando vi nos dois dias de show aqui em Porto Alegre o Gillan tossindo, indo atrás da bateira se recompor, veio dentro de mim vários sentimentos: melancolia, constatação, uma certa tristeza. De longe eu estaria descontente com o nosso querido Gillan.
    Porém, só ali me dei conta que a idade chega até mesmo para os nossos heróis, que eles estão passíveis de uma gripe também. Talvez seja a sensação que bem querer aos ídolos, não sei...
    O Purple é a forma de arte que me despertou apra as outras artes, que me abriu os ouvidos e a mente para toda a música, principalmente para o rock n'roll. Espero que eles continuem com essa garra e este gosto pelo que faz pelo menos para saciar mais um pouco a insaciável sede dos fãs...

    Mais uma vez, parabéns pelo texto, parabéns pelo blog! Tu és um privilegiado em ter esse contato com eles!
    Grande abraço!

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  3. Mestre Vitor (muito em breve com título de mestre e tudo!), acho que tenho uma edição antiga do Cavaleiro das Trevas sobrando aqui. Vamos se falando.

    Anderson, é exatamente isso. A gente quer bem a eles, quer vê-los no topo da forma. Mas todos vamos ficando velhos exatamente no mesmo ritmo - um ano por ano.

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  4. Fui ao show ontem (07/03) e me deparei com o mestre tossindo muito e magro demais (até me assustei) e foi exatamente como você Soares relatou precisamente no seu ótimo comentário. Teve até um momento em que na metade da música The Battle... ele fez um exercício de respiração no palco. A voz falhou sim, três vezes que eu reparei, mas o mestre soube respeitar o público presente e cantou o melhor que podia, muito simpático, não deixou a peteca cair e o resto da banda estava afinadíssima. Palmas dobradas para o Glover que sabendo da dificuldade do seu amigo mostrava uma animação extra.

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  5. Anônimo4:21 PM

    Excelente post. Quando li a minissérie Batman - O Cavaleiro das Trevas, logo pensei nas bandas que pararam e voltaram a atividade.

    Para quem tiver interesse na revista é fácil achar na net, é so procurar por Batman - O Cavaleiro das Trevas e Batman - O Cavaleiro das Trevas 2.

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  6. Marcelo, sou muito fã de deep purple e cheguei até seu blog atraves do meu namorado que o achou no google. enfim.
    Quero comentar sobre seu post. eu fui no show e achei que o gillan fez um papel de um bom músico, apaixonado por música e pelos fãs! ele tossiu muito! juro que da plateia fiquei preocupada, mas depois da atitude dele de continuar o show e fazer dele algo inesquecível, penso que esse é um dos motivos que me faz gostar do deep purple! Já vi muitos shows serem cancelados por conta de gripes do vocal... e ele continuou lá!!! fazendo os fãs delirarem com sua voz maravilhosa!
    fiquei muito emocionada de ler e assim saber o que o gillan fez atras da bateria! eu estava longe do palco, pois passo mal na frente, e o show já foi muito emocionante, mais uma vez... saber disso me fez mais feliz com eles do que já sou!!!

    vou começara entrar mais aqui!
    obrigada
    Manu

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  7. Anônimo10:28 AM

    Na realidade tenho pouco a acrescentar em relação aos outros comentários. Teu post foi de alta qualidade. Me emocionou mesmo. No show que assisti em Porto Alegre cosnstatei duas verdades: a)a passagem do tempo é inexorável, pra todos nós, e nos cobra um imposto muito alto, e b) nosso ídolos envelhecem tb e aproxima-se perigosamente o momento em que não nos deleitaremos mais com seus interessantes trabalhos.
    Apesar de ter trazido eta melancolia, bem lembrada pelo Anderson, o show foi muito bom. Creio que sempre valerá - e muito - à pena assistir um show do DP.

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  8. Anônimo8:52 PM

    De Fato....O que se viu Por Parte de Ian Gillan no Palco ja Era Surpreendente para os Amantes do Deep Purple e do Rock N' Roll...

    mas Vendo (Mais Um)...Brilhante Texto de Marcelo Soares....Que ali Esteve e Presenciou muito de Perto..a Força...e a Vontade de Gillan...é Emocionante Magnifico....

    E que o Deep Purple possa Continuar por 1 Dezena de anos ainda...Nos Brindando com sua qualidade e o amor Inconfundivel á Musica que Fazem.....

    Elemento que Nemhuma Banda Dessa Era Puramente Marqueteira e Comercial Nos Brindará..

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  9. Daniel Coronado2:23 AM

    AMO Gillan com ou sem voz! Esse foi um dos caras que me levou a querer cantar e ser o músico que sou hoje!
    Ele é autentico! Por isso passa o que quer das músicas com ou sem voz! Por isso adimite seus erros e erra com perfeição! Com a perfeição que apenas conseguimos com a idade!!!

    vida longa ao melhor vocalista de rock!!!

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