Em 1970, Ian Gillan gravou os vocais de Jesus Cristo no disco conceitual "Jesus Christ Superstar", de Andrew Lloyd Weber, que viraria peça logo a seguir e filme em 1974. Dois anos depois da gravação da obra original, Vinicius de Moraes seria chamado para traduzir as letras para o português. Quer ouvir? Clica aqui. E acompanha as letras assim.
A primeira vez em que ouvi foi numa fita emprestada pela professora responsável pela biblioteca do colégio onde eu estudava no segundo grau. Ela tinha visto a peça na Broadway nos anos 70 e comprado a fita na saída. Aí começamos a comentar sobre a voz do sujeito e coisa e tal... e no fim acabei emprestando uma fita do Deep Purple pra professora (que não conhecia, mas pra minha surpresa até gostou). Era muito legal, porque a gente tinha altos papos sobre literatura - foi sentado em frente à mesa da professora que eu comecei também a ouvir jazz.
Ao gravar a versão original das letras, Ian bolou a forma de cantar ao lado do piano, com Andrew Lloyd Weber e Tim Rice. Mas ficou todo encucado. "Meu único problema era Jesus Cristo. Tendo sido criado como cristão, mas (na época) tendo sido confirmado no paganismo, fiquei intrigado com a ética da coisa. Tim resolveu o problema me dizendo como ver Cristo... não como um ícone religioso, mas como uma figura histórica... e funcionou muito bem."
Acompanhem com atenção as letras originais de JCS. São muito legais. Críticas, mas sem afronta. Modernas, mas mantendo trechos tirados direto da Bíblia. Por mais que eu seja agnóstico, ESSA interpretação de Jesus Cristo é a que eu admiro. O José Saramago fez algo semelhante em "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Em ambas as histórias, de certa forma, o herói não é o personagem-título, e sim o Judas.
Uma das grandes virtudes que eu sempre achei nas letras de JCS foi a mistura de passagens literais da bíblia - ou pelo menos com um tom e vocabulário solenes o suficiente para terem vindo de lá - com gírias de hippie ("Take this cup away from me/for I don't want to take its poison/ (...) You're far too keen on where and how but not so hot on why"). O Poetinha mantém a métrica perfeita, mas pra isso abusa da gíria.
Vinicius nessa fase era um ripongo velho e safado. A tradução de JCS chegou a ser encenada em teatros paulistas em 1972, com orquestra e tudo mais. A gravação estava perdida (sequer se sabe se chegou a ser lançada comercialmente na época), até que as masters foram encontradas nos porões da gravadora Universal, há quatro anos, e relançadas numa caixa caríssima. Ficaram perdidos no tempo os nomes dos instrumentistas e cantores.
"Heaven on their Minds", o belíssimo petardo com que Judas abre o disco criticando a postura do personagem-título, virou "Céu na Cuca" na tradução do Vinicius. O poetinha toma liberdades tipo dizer "você deu uma de Cristo". No duelo entre os dois personagens principais, ele tascou um "Vai, imbecil! Engrena e vai. Chega de papo! Você já encheu, vai!". (Sim. É a hora em que o Gillan dá seu maior agudo no original.)
Tomei a liberdade de comparar uma estrofe, frase por frase, no original, na tradução do Vinicius e em uma tradução minha (sem métrica e sem rima, mas mais fiel ao original). Vejam só:
a) Listen Jesus I don't like what I see
b) Eu não estou gostando disto, Jesus
c) Olha, Jesus, não estou gostando do que vejo
a) All I ask is that you listen to me
b) Você deu uma de Cristo, Jesus
c) Tudo que eu peço é que você me escute
a) Please remember - I've been your right hand man all along
b) Nem se lembra eu era bom pra tudo, Jesus.
c) Por favor, lembre - eu fui seu braço direito o tempo todo
a) You have set them all on fire
b) Estão todos com a mania
c) Você acendeu o fogo de todos eles
a) They think they've found the new messiah
b) De que você é o Messias
c) Eles acham que descobriram o novo messias
a) And they'll hurt you when they find they're wrong
b) Em que fria você se meteu...
c) E vão feri-lo quando descobrirem que erraram
ERRATA: Foi Carlos Drummond de Andrade quem traduziu as letras do Álbum Branco. A tradução pode ser conferida aqui. Salve mestre Rui Goiaba.
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