quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Uma noite pra não esquecer jamais

Ian Gillan me mandando email pra prestar satisfações logo pela manhã? Ian Paice me servindo uísque e exorcizando um clone do Blackmore? Steve Morse conversando com o Spigha no meu celular? Roger Glover dizendo que tá velho e precisa dormir no dia de folga? O que é isso? É apenas o dia mais inesquecível da minha vida.

Estava eu conversando com a digníssima no MSN quando vejo lá embaixo um aviso de nova mensagem. Subject: “from ig”. Abri. “Hello Marcelo, Espero que você receba isto a tempo. Infelizmente, estou em uma quarentena, e por mais que eu esteja muito a fim de tomar uma cerveja com você depois do show, minha equipe vai me levar correndo de volta pro hotel no que eu sair do palco.” O mestre teve uma gripe no México, e por motivos de seguro (sério) precisou fazer isso. O pior, pra ele, é que a goela de prata ESTAVA boa e mesmo assim ele precisaria escapar. “Isso me irrita muito, porque eu na verdade não estou me sentindo mal e o show deve estar quente nesta noite”, prometeu ele. E cumpriu.

Saí do trabalho lá pelas 5. Fui ao show com o mestre Fauze Abdalla, vocalista da banda Fireball. Meu nome era o primeiro da lista de convidados VIP. Lá no Credicard Hall, encontramos outros três caras da banda: André Carvalho, André Gonzales (cujo pai, que também estava no show, é um dos mais antigos fãs do Deep Purple no Brasil) e Alexandre Spigha. Também estava por lá o Márcio, um amigo músico que me apresentou a Fireball há uns três ou quatro meses. Logo na entrada, eu e o Abdalla nos mijávamos de rir com um magrão que passou por lá. Tinha a cara e a roupa do Blackmore com uns 40 anos de idade. “Meu, parece aqueles caras que imitam o Michael Jackson!”, disse o Abdalla. Voltaríamos a topar com essa figuraça.

O lugar é longe pra burro - e pra inteligente desmotorizado mais ainda, e olha que estávamos em dois. O estacionamento, pros motorizados, é uma facada. A cerveja é MUITO cara (R$ 5 a latinha). A acústica não é lá essas coisas. A seleção musical pré-show não tem nada a ver. O sem-noção que cuidava da iluminação acendia a luz no intervalo entre as músicas, e por alguma coincidência infeliz o refletor batia bem nos meus olhos. Nada disso, porém, impediu o show de ser simplesmente fabuloso. O setlist foi o mesmo do México.

Ian Paice é o primeiro a entrar no palco. Reverencia a platéia, senta em seu banquinho, pega as baquetas e bota os pigmeus que tem escondidos na manga pra trabalhar: é Fireball começando. O Gillan começa a cantar enquanto vai caminhando pra dentro do palco. Boa parte do público cantando junto, o que pra mim é algo muito tocante. Do meio pro final, alguém joga uma bandeira do Brasil no Gillan. Ele levanta a bandeira e o aplauso é geral.

Todo mundo canta junto Strange Kind of Woman. No final tem um leve duelinho entre o Gillan e o Morse, mas bem amistoso. Logo em seguida, duas do novo disco: Wrong Man (“bela música para um baterista”, comentou o Vitão Bonesso com o Ian Paice) e Kiss Tomorrow Goodbye. A música seguinte, nas palavras do Gillan, foi inspirada em uma ocasião em que alguém tomou uns martinis a mais e ficou andando pra trás, se é que eu entendi direito. Era Demon’s Eye, e boa parte do pessoal cantou junto. O mestre tropeçou um pouco na letra, mas ele pode.

Logo depois, vem Rapture of the Deep, a faixa-título do novo disco, pra fechar o conjunto de músicas novas. Acho que eu ouvi mais gente do que eu e o Abdalla cantando. O riff arabesco agradou ao pessoal. Segundo o Roger Glover, essa foi apenas a quarta vez em que eles tocaram essas músicas novas ao vivo.

Pra descansar a garganta do mestre, nada melhor que um bom intervalo instrumental. Tem Contact Lost? Tem, sim senhor. Tem Well-Dressed Guitar? Tem, sim senhor. Tem solo do Don Airey com direito a citações de Aquarela do Brasil e do tema de Star Wars? Tem, sim senhor. E isso tudo leva a Perfect Strangers, com o Airey afundando os dedos no teclado.

Logo depois, começa Highway Star. Paice batendo na bateria. Glover pega o baixo e vira de frente pro Steve Morse. Um olha pra cara do outro, tocando. Trocam solos fabulosos, mas a coisa parece demorar tempo demais. Distraindo a platéia pra esperar a volta do Gillan? Talvez. Várias vezes, parecia que ia começar mas não começava. Aí o mestre entrou no palco e começou a introdução da música. O Credicard Hall em peso cantando, o que é uma coisa de fazer cair o queixo. “Da estrada (highway) do rock’n’roll, vamos agora direto para o espaço”, anunciou o Gillan. E dê-lhe Space Truckin’. Novamente, ele usou sua prerrogativa de tropeçar na letra. Mas ele, como eu disse, pode.

O primeiro set terminou com Smoke on the Water. Finalmente, o Steve Morse desistiu de fazer aquela brincadeira de citar vários riffs famosos antes de entrar no famoso riff deles. Sem frescura. Todo mundo cantando junto, e tinha neguim ameaçando ter infarto.

O bis começou com Lazy. Ao final da música, Ian avisa que o número seguinte fora descoberto dentro de uma caverna, e lá estava havia 20 mil anos. É Hush, gravada em 1967 por Joe South e no ano seguinte pelo Purple. Ao final, o Paice estraçalha em um solo de bateria. O set fechou com Black Night, em que novamente o mestre faz uso de sua prerrogativa. Ele pode. “Cara, se ele subisse no palco e só dissesse boa noite, eu sairia feliz igual”, disse o Abdalla.

Ao final, fomos ao camarim. Depois de alguma espera, fomos chamados. No caminho, meu celular toca. Engraçado: o toque é Black Night, mas tenho quase certeza de que ouvi Lady Double Dealer. Enfim: estou ficando velho e sem paciência.

Ian Paice nos recebe e pergunta se eu quero beber alguma coisa. “Tá tomando o quê?”, perguntei. “É um suco de laranja com vodca. Mas tem o que você quiser: isto, Coca-Cola, scotch...” Pedi um uísque. O próprio Paice, o cara que há 37 anos castiga bumbos e pratos no Deep Purple, colocou uma pedra de gelo no copo e serviu. “Eu juro que se fosse comigo eu mijava nas calças”, disse o André Gonzales, baterista da Fireball. Tomei até a última gota do uísque e ainda mastiguei o gelo. Assim que o Roger Glover apareceu, ele assinou um desenho dele que eu imprimi a partir do site dele. “Conhece isto?”, perguntei. “Claro que conheço. Era um quarto de hotel onde eu fiquei.” Vai pra parede, claro.

Momento inesquecível: o cover do Blackmore também tinha um passe VIP e entrou lá. Quando ele entra, o Paice olha pra cara dele, dá um grito e faz uma cruz com os dedos. “Pô, o de verdade é assustador assim?”, perguntei. “Pior!!!”, respondeu ele. O Roger não quis desenvolver muito a história do infame jogo de futebol que postei aqui outro dia. Pena. Diz ele que não lembra mais.

Precisava dividir aquele momento com alguém que compreendesse a magnitude daquilo. Tive uma idéia: liguei pro celular do Spigha, que estava do lado de fora esperando. Pra quem não conhece, ele é um baita guitarrista, tem uma banda cover de Steve Morse e a partir dela é que se formou a Fireball. “Cara, güenta aí que assim que o Steve chegar aqui eu passo o celular pra ele”, eu disse. Assim fiz. “Oi, aqui é o Steve. Cara, muito obrigado - o show foi ótimo, tudo por causa de vocês da platéia”, disse o Morse no meu celular, no ouvido do Spigha. Ele só acreditou depois que eu saí de lá e insisti umas três vezes em que era o próprio cara. Era bom demais pra ser verdade, e o pior de tudo é que ERA verdade.

Eu confesso que eu me sentia um babão bobalhão. Eu tinha milhares de coisas pra perguntar a eles. Milhares de coisas pra dizer a eles. Milhares de coisas pra agradecer-lhes. Mas não saía nada. Eu apertava as mãos deles, dizia que é um prazer imenso, e só. Estava me sentindo um mala sem-noção. Completamente sem-noção. Não sabia o que fazer. Caralho, eu sou jornalista. Minha função é fazer perguntas. Sou treinado pra isso. Conheço esses entrevistados como a nenhum outro. Mas ainda assim não saía nada. É exatamente por conhecê-los e admirá-los tanto que eu travei. Não devia. Isso só reforça minha posição de evitar escrever profissionalmente sobre um assunto em que eu esteja tão envolvido.

Quase não tive coragem de apresentar alguma coisa pra eles assinarem. Queria puxar papo sobre alguma coisa legal, mas não saía. Eu de vez em quando imaginava como deviam estar vendo a expressão babona no meu rosto e pensando que só faltava eu me ajoelhar e gritar “I’m not worthy”, como naquela cena do Alice Cooper em “Quanto Mais Idiota Melhor”. Não me senti à vontade pra abraçar nenhum deles (só apertei mãos), e as pilhas da máquina digital que levamos foram confiscadas na entrada. De vez em quando eu lia algum desconforto no rosto deles. Por mais que eles estejam acostumados, imagino que seja um saco receber aquele bando de babões toda noite, em toda cidade de todo lugar do mundo.

De qualquer forma, trouxe o ingresso e o quadro do Glover autografados. Foi uma noite pra nunca mais esquecer. Se eu não sofri um infarto desta vez, nada mais me derruba.

(Atenção: dia 4, no Blackmore Rock Bar, tem show da Fireball. Quem levar o ingresso do show do Purple paga a qualquer hora o preço pago por quem entrar antes das 23h.)

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