terça-feira, 14 de outubro de 2003

Divagações musicais

Guardadas as diferenças óbvias, "Machine Head" é para o Deep Purple o que "Kind of Blue" foi para o Miles Davis. A simplicidade do riff de Smoke on the Water lembra o despojamento do tema básico de So What, aqueles dois acordes que se repetem. Sem falar em fraseados aparentemente imperceptíveis mas que se ouve com a familiaridade do som do vento, como a divagação de Jon Lord no teclado em Maybe I'm a Leo ou a de Coltrane em Blue in Green. Ou a repetição que, no tempo do vinil, fazia supor que o disco havia arranhado - tanto no riff do refrão de Space Truckin' quanto no solo de Davis em Flamenco Sketches.

Claro, nem todo mundo que gosta de Deep Purple vai gostar de Miles Davis e provavelmente vice-versa. Mas ouvir atentamente discos como esses é uma ótima explicação para o motivo de os artistas reunirem sua produção em álbuns. Bem sacado, o álbum mostra claramente as idéias que rolam na cabeça dos artistas num período determinado de tempo.

Há quem me pergunte "tá, mas que música do Deep Purple é boa?". Pessoalmente, não gosto desse tipo de pergunta, assim como não gosto de coletâneas por melhores que sejam. Elas desfiguram o trabalho de um artista pinçando apenas o que se tornou mais famoso - e desgastando pela repetição. Gosto é do álbum, com seus altos e baixos e preciosidades que não chegam a ficar famosas mas são uma delícia de descobrir.

Isoladamente, não tenho mais saco pra ouvir Smoke on the Water. No contexto de Machine Head, porém, entre Never Before e Lazy, a música volta a significar exatamente o que eu entendi dela quando tinha 15 anos e troquei o ingresso que tinha ganho do baixista do Roxette por um vinil de Machine Head na Megaforce. Cheguei em casa no final da tarde, com o disco dentro daquele saco preto com a mão prateada segurando um raio, e deitei sobre ele a agulha. Eu já conhecia Smoke on the Water, claro. Mas apenas depois que eu ouvi sobre o vazio, as águias e a neve e virei o disco e que entendi o que significava a fumaça sobre a água e o fogo no céu.

É o mesmo com o Kind of Blue. No meu tempo de solteiro morando sozinho, descobri em furtivos encontros o quanto o timing do Miles Davis era perfeito. Tenho So What em uma coletânea também - mas ali ela significa uma passagem entre um tema de Porgy & Bess e My Funny Valentine. Dentro do Kind of Blue a mesma música abre uma perfeita noite em boa companhia que sutilmente vai determinando um clima exato até que cai nos lençóis macios de Flamenco Sketches. E aí, meu amigo, o melhor é abrir o Torrontés enquanto Freddie Freeloader está na área.

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