quarta-feira, 17 de setembro de 2003

Glover na Zero Hora

Abaixo, a íntegra da entrevista com o Glover que saiu na Zero de hoje:

"Show
Entrevista: Roger Glover, baixista do Deep Purple

Discreto e eficiente como manda o arquétipo do baixista de rock, Roger Glover é uma das principais forças dentro do Deep Purple e um dos remanescentes da chamada formação clássica da banda, do início dos anos 70. Sóbrio, mas bem-humorado, Glover falou a Zero Hora por telefone dos Estados Unidos, onde mora. Leia a íntegra da entrevista:
Zero Hora – Vocês escolheram começar a turnê pelo Brasil, é importante tocar aqui?
Roger Glover – É importante ir a todos os lugares. É uma questão de negócios, os agentes decidiram marcar os shows, não é uma escolha nossa.
ZH – O repertório será diferente no Brasil?
Glover – O Brasil verá um Deep Purple bem diferente do das últimas turnês. Nos últimos dois anos, vínhamos tocando o mesmo repertório em turnês e festivais, não tínhamos um novo disco. Agora, vai mudar, temos um disco novo, e acho que muitas das músicas dele serão músicas de palco. Em um show em Berlim, já tocamos seis novas músicas, acho que foram bem, deveremos continuar.
ZH – Qual a interpretação para o título do novo CD, Bananas? É algo político?
Glover – Cada um interpreta de um jeito. A idéia original para Bananas veio de uma foto tirada no Vietnã. Eu vi a imagem em um jornal da Austrália, era um cara carregando um montão de bananas em uma bicicleta. É a foto na contracapa do encarte do CD. Eu vi aquilo e disse pro Ian Gillan, que estava do meu lado no avião: "É um ótimo título para um disco, vamos chamá-lo "Bananas". Era uma brincadeira, mas ele gostou. Isso foi há uns três anos, não achamos um nome melhor. Mas é o tipo da coisa sem maiores significados. Lembro de quando era guri, há muitos anos, gostei muito de uma música que ouvi no rádio, mas não lembro que tenha sido um grande sucesso, porque a banda tinha um nome estúpido: "The Beatles" (risos). Se você falar com Ian Gillan, ele dirá que é uma coisa política. A banana é um produto que sofre uma série de regulações na Inglaterra. Ian ficou brabo com essas regras, que a banana tem de ter um determinado tamanho e curva. Bananas de outros países não podem ser vendidas na Europa, porque não atendem às regras. Para o Ian, é uma coisa muito política. Para mim, apenas gosto da idéia da incongruência: algo tão simples como uma banana pode ser tão pesado em grande quantidade. "Bananas", em inglês, é também uma gíria para "ficar maluco". No final, para uma banda como o Deep Purple, é difícil que a maioria das pessoas saiba que ela exista, que dirá que lançou um novo álbum. Então, um nome controverso ajuda (risos).


ZH – Há outra letra mais crítica, Picture of Innocence, algo não muito comum nas canções do Deep Purple.

Glover – Temos estado muito envolvidos com política, de uma forma geral. Nunca nos dissemos de esquerda ou direita, nem pró ou contra algo. Achamos que não é nossa tarefa. Como banda, temos opiniões diferentes, é impossível dar um ponto-de-vista. Picture of Innocence não é bem sobre política, mas sobre como estamos sendo homogeneizados, transformados no mesmo. Na União Européia, temos tido de nos conformar com regras, mas as pessoas são diferentes, querem se expressar de formas diferentes. As culturas são muito importantes. No Brasil, vocês são orgulhosos da sua cultura, porque é brasileira, e de nenhum outro lugar. Eu venho de um país pequeno, o País de Gales, temos nossa cultura, somos diferentes, é bom ser diferente.


ZH – Hoje, a banda toda vive na Inglaterra?

Glover – Não. Três moram na Inglaterra e eu e Steve (Morse) moramos nos Estados Unidos.


ZH – Há muito tempo você vive na Inglaterra?

Glover – Steve vive há muito mais tempo que eu, uma vez que ele nasceu aqui. Uma das alegrias de ter uma banda é viajar pelo mundo. Quanto mais viajo, mais percebo algo que John Lennon disse: "países são apenas homens fazendo coisas". Países na verdade não existem, não há fronteiras. Não me vejo como um músico britânico. "Imagine não haver países. É fácil se você imaginar", disse Lennon. Eu gosto de diferentes culturas, mas não gosto da idéia de um país ser melhor que outro. Patriotismo me parece um desperdício de fôlego. Os americanos gostam de dizer: "somos o melhor país do mundo". E não é. Isso não é apenas inútil, é também perigoso, pode levar à guerra, ao medo das outras pessoas. As pessoas não gostam de mudanças. Em uma banda como o Deep Purple, sim, nós mudamos. Temos de mudar, se não morremos. Há quem diga: "oh, não, vocês têm que ser como eram em 1970". Não posso sê-lo, assim como quem diz isso também não pode.


ZH – Você mencionou mudanças. Os fãs esperam que vocês toquem hoje exatamente como nos anos 70, ou é diferente quando a banda está no palco?

Glover – É diferente quando estamos no palco. Coisas ótimas aconteceram nos anos 70. Reconhecemos isso, temos ótimas lembranças, temos um grande passado. Mas o passado não é importante, não existe mais. O que existe é agora e o futuro, e o futuro ainda nem chegou. Não pensamos no passado, pensamos no que estamos fazendo agora e no que fazer a seguir. E no palco há algo especial. Vi uma banda tocando outro dia em Nova York, e achei muito boa. Era uma jovem banda inglesa, todos na faixa dos 20 anos, chamada Stedment. Eu nunca tinha ouvido falar deles. No outro dia, fui comprar o disco deles. Ouvi e não achei bom o disco. Há algo na música tocada ao vivo, uma eletricidade, que faz do show a melhor situação para se ouvir música, quando se vê o músico tocando. Não sei o que nossos fãs esperam, mas quando vamos dar um show, queremos dar tudo de nossa habilidade musical. Somos músicos, tocamos diferentemente a cada noite, há muita expressão e experimentação rolando. Acho que os fãs do Deep Purple perceberam isso ao longo do tempo. Não somos apenas volume alto, há um pouco de inteligência rolando.


ZH – Há duas músicas no novo álbum em que Jon Lord aparece como autor. Elas parecem ser as mais elaboradas do disco.

Glover – São as que estavam há mais tempo rolando. Começamos a compor esse repertório há dois ou três anos, e Jon ainda estava na banda. Essas músicas nunca ficaram realmente acabadas, eram apenas idéias brutas. Quando fomos fazer o disco, retrabalhamos os temas. Não acho que haja razão para elas serem diferentes só por terem Jon Lord como um dos autores. Talvez sejam um pouco mais complicadas, talvez porque estivéssemos apenas nos divertindo. Mas a faixa Bananas é também bem complicada, acho que isso não quer dizer nada.


ZH – Mas é muito diferente compor sem Jon Lord?

Glover – Sim, mas não é necessariamente ruim. Eu gosto de Jon, tenho muito respeito por ele. Não comparamos Don (Airey) com Jon, são pessoas diferentes, assim como não comparamos Steve (Morse) com Ritchie (Blackmore). Alguns fãs adoram compará-los, mas se nós o fizermos não teremos vida (risos). Don traz seu próprio caráter à banda. Sim, sentimos falta de Jon, que era e é um músico soberbo, mas Don também é. A coisa funciona bem. Jon vinha pensando em sair da banda nos últimos quatro ou cinco anos, nesse período ele não estava realmente dentro da banda. O último ano e meio tem sido bem melhor, porque Don é o nosso tecladista de qualquer forma.


ZH – Como vocês se conheceram?

Glover – Eu conheci Don quando estava no Rainbow, entre 79 e 80, virou um bom amigo. Depois, não o vi por alguns anos. Nos falamos quando o Cozy Powell morreu. Don, Cozy e eu éramos muito próximos nos tempos do Rainbow. Quando John ficou doente em uma turnê, pensamos: quem consegue tocar a parte do John? Don foi a escolha óbvia. Ligamos para ele, enviei uma fita e disse: Você pode aprender isso em dois dias? (risos) Ele veio e tocou com a gente, então foi uma escolha natural.


ZH – Como é hoje a relação da banda com seus ex-membros, como Ritchie Blackmore? Ainda há atrito entre ele e a banda?

Glover – Não que eu saiba, mas até onde ele se importa, sim. Quer dizer, não há contato com ele. Ele, por meio de seu agente, tem se preocupado em que não usemos o nome dele para mostrar nossa música. Nós não nos importamos muito com isso, para nós não é tão importante. Mas, quando ele ainda estava na banda, não havia muita comunicação mesmo. Então, não haver comunicação agora não quer dizer nada. Também não há comunicação entre nós e Joe Lynn Turner ou Glenn Hughes ou David Coverdale.


ZH – Não se teve mais notícia de Nick Simper e Rod Evans?

Glover – Eu não tive, na verdade não lembro. Nick Simper tocou numa banda chamada Warhorse, ou coisa parecida. Para ser honesto, não sei o que ele está fazendo agora, acho que ele toca em alguma banda na Inglaterra, mas não acho que seja algo de muito sucesso. Rod Evans desapareceu, ninguém sabe onde está. Depois do Purple, ele também teve uma banda, chamada Captain Beyond. Acho que ele se mudou para os EUA, mas ninguém sabe onde ele anda agora.


ZH – Você mencionou antes que assistiu uma banda nova tocando. Você percebe a influência do Deep Purple nas bandas atuais?

Glover – Acho que se percebem influências, mas não só do Deep Purple. O som do Deep Purple veio da música dos anos 50. Não diretamente, mas crescemos ouvindo isso, foi uma impressão muito forte. Acho que, no final dos anos 60 e início dos 70, o que se viu foi o nascimento do hard rock, que não poderá nascer de novo. Acho que ainda se ouve a influência das grandes bandas daquele tempo, como Led Zeppelin, Black Sabbath and Deep Purple. Mas não tenho nenhum orgulho pessoal disso, acho que aconteceu de eu estar na banda certa no lugar certo e na hora certa.


ZH – Não é então nada específico, tipo "esses caras estão tocando guitarra igual a nós"?

Glover – Não muito. Sim, às vezes você ouve, mas não acho que seja problema. Acho que é bajulação.


ZH – Que tipo de música você gosta de ouvir hoje?

Glover – O mesmo tipo de música que eu gostava de ouvir ontem (risos). Vou explicar: eu gosto de canções, antes de mais nada. Se apresentarem boas canções, vou gostar, não interessa se é uma banda, um grupo de heavy metal, Mariah Carey, Radiohead ou Fritz the Cat. Não procuro música velha ou nova. É tudo música. Há muita música por aí com a qual não me ocupo muito, não porque seja música ruim, mas por ser música feita por máquinas, não por músicos. Você pode fazer uma boa canção com uma máquina, mas não acredito que uma máquina possa fazer uma boa música. As pessoas podem se expressar, não interessa se usem máquinas ou instrumentistas, mas depende de como se usa. Há quem use as máquinas muito bem. Não sou contra tecnologia, ela é legal, o que conta é como usar. O que interessa é se você se conecta emocionalmente com as pessoas. Quando você compõe algo que atinge uma outra pessoa, é o que realmente o que conta.


ZH – Como você mencionou, o Purple é sempre citado como uma das maiores bandas do hard rock, ao lado do Led Zeppelin e do Black Sabbath. Como vocês lidavam com isso na época? Havia competição entre as bandas?

Glover – Não lembro de nenhuma competição entre as bandas. Eu era um fã de Led Zeppelin, um grande fã. Não sabia realmente muita coisa sobre o Black Sabbath, não era meu tipo de música. Mas a música do Led Zeppelin eu achava fantástica. Não havia competição. Sabe, quando você é uma banda jovem e não tem sucesso nenhum, você se compara com todo mundo. Quando você conquista o sucesso, de repente você está em seu próprio mundo. Nunca fui muito competitivo a ponto de pensar em ser melhor do que alguém, pensava em ser diferente, o melhor é ser diferente.


ZH – Ser você mesmo.

Glover – Sim, sendo você mesmo você será diferente, todos são únicos. E é algo difícil ser você mesmo. Quando eu tinha 12 anos e estava aprendendo a tocar guitarra, a primeira coisa que fiz foi aprender músicas dos outros, os sucessos da época. Aí, você está tentando ser outra pessoa. É um longo processo de tornar-se você mesmo, demanda tempo e experiência.


ZH – Posso imaginar. Você começou tocando baixo ou começou na guitarra e depois passou para o baixo?

Glover – Comecei no violão, tocando alguns acordes e cantando músicas folk e sucessos da época. No colégio, formamos uma banda e fui para o baixo, não porque queria, mas porque um garoto sabia mais acordes que eu, e o outro tinha uma guitarra elétrica. Eles começaram a tocar, então fui para o baixo (risos). Mas adorei, gostei muito.


ZH – Quais eram os sucessos da época?

Glover – A primeira música que toquei foi Rock Island Line, do Lonnie Donegan, antes do rock'n'roll, logo antes. Lonnie Donegan foi um artista maravilhoso, foi um dos primeiros a tocar blues e gospel na Inglaterra. Muitos garotos ingleses cresceram ouvindo Lonnie Donegan. Ele ensinou os Beatles, o Eric Clapton, o Jimmy Page, ele foi o primeiro herói de todos os ingleses. E meu também. Ele morreu no ano passado. Depois dele, vieram Little Richard, Chuck Berry, Elvis Presley e houve uma grande mudança no mundo, lá por 55, 56, foi quando o rock'n'roll nasceu. Eu tinha 12, 13 anos, era uma época fantástica e eu tinha a idade perfeita. Antes disso, ninguém se expressava emocionalmente. As músicas eram feitas muito cuidadosamente, e tocadas com muito cuidado. Aí Little Richard apareceu gritando, pensei "puxa, nunca vi isso, alguém gritar". Era um tipo de música novo, aberto e excitante. Os jovens disseram: sim, é uma ótima forma de expressão. Os mais velhos não gostaram muito, não gostaram de ver emoções expressas tão abertamente. Preferiam algo como Frank Sinatra, que é ótimo. A música era feita cuidadosamente, não era algo selvagem. Nem um pouco.


ZH – Isso leva a outra pergunta: muitos críticos parecem achar que foram os punks que inventaram a energia no rock. Mas o próprio Deep Purple era uma das bandas mais energéticas, e você lembrou que Little Richard já era selvagem nos anos 50. Qual foi a sensação quando o punk rock apareceu e tentou bater todas as bandas que já existiam, havia uma sensação de destruição?

Glover – Nunca me afetei muito com a música punk. Música punk tinha tudo a ver com energia e não muito a ver com música. O que é bom, eu ouvia Sex Pistols e achava ótimo, porque havia muita atitude. Eu não achava isso um problema. Talvez o seu problema seja dar atenção aos críticos (risos). Cada um tem um ponto de vista. Se você nasceu numa determinada época, vai lembrar do que aconteceu a partir dali. Rock'n'roll foi a primeira coisa que eu ouvi. Para muita gente, o punk rock foi a primeira coisa que se ouviu, e o que veio antes soa antiquado. É como eles vêem. Entendo isso assim: a música parece andar em ondas, ciclos, e não vejo o punk rock como um outro estilo de música, mas como uma batalha entre negócios e arte. Às vezes você não gosta disso ou daquilo, mas é arte. Às vezes, é algo criativo, feito por artistas, músicos, escritores, que criam de coração, e isso faz sucesso porque é forte. Aí o mundo dos negócios toma a arte e faz com que uma porção de gente a copie, porque faz sucesso. Aí, o produto se torna diluído. Aí vem uma nova onda de artistas e faz algo diferente. O punk foi parte desse movimento. O hard rock foi a manutenção de uma onda. Em 1969, queríamos continuar o que Cream e Jimi Hendrix tinham começado. Daí, a coisa floresceu e se tornou muito grande no início dos anos 70, mas, lá por 1975, a única outra alternativa era a música disco. Naturalmente, o punk rock era bem diferente da disco, e foi um novo choque, o rock era pop de novo. E a próxima mudança de volta ao pop foi o grunge, Seatlle. E é um processo contínuo.


ZH – Então, não existe isso de "o rock está morto"?

Glover – O rock é um tipo de música, como o são o jazz, o gospel e o clássico. A música clássica mudou muito. Você ouve música clássica dos séculos 15 e 16 e ouve a dos séculos 18 e 19, é muito diferente. É o mesmo tipo de música, você vê as similaridades. Mas a raça humana evolui e muda as coisas. A diferença do Vivaldi pro Stravinsky é grande. Quando Stravinsky apresentou A Sagração da Primavera pela primeira vez, em Paris, a obra foi vaiada, e hoje é vista como uma das maiores obras da música erudita. Foi vaiada porque as pessoas não entenderam, não estavam preparadas para a mudança. O rock'n'roll também sofreu mudanças. O Deep Purple teve seu papel, temos sorte de ter nosso espaço durante um longo tempo. Nunca poderemos ser tão inovadores como éramos nos 70, era um período especial, é impossível sermos como éramos, ninguém normal pode ser como era há 30 anos. Não é questão de dizer se somos melhores ou não, é diferente. Mudar é bom, é necessário, você muda de pele de tempos em tempos."

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